MANAUS – O Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização nacional dos povos originários do Brasil na luta por seus direitos, cujo tema foi “APIB somos todos nós: em defesa da Constituição e da vida”, encerrou no último dia 11 de abril, em Brasília. Imagens das passeatas, repressão policial e resistência dos indígenas inundaram o noticiário e as redes sociais. Mas, um componente a mais chamou atenção na edição 2025: a presença dos bois de Parintins, Caprichoso e Garantido, que acompanhados de seus respectivos “tripas”: Alexandre Azevedo e Batista Silva fizeram a festa do acampamento. Além deles, a cunhã-poranga do azul, Marciele Albuquerque e o pajé vermelho, Adriano Paketá estiveram presentes.
Voluntários nas passeatas e palcos do ATL 2025, Garantido e Caprichoso foram saudados pela organização do evento e por todos que lá estavam e puderam presenciar um discurso indo à prática. Os bois, que tanto clamam pela Amazônia e suas mazelas humanas e ambientais, decidiram sair da retórica para encantar jurados e se fazer presentes em pautas de luta e resistência daqueles que são uma das bases da festa parintinense: os povos originários do Brasil.
Convicções políticas
Tanto Marciele Albuquerque quanto Adriano Paketá encarnam papéis fictícios na arena de Parintins, mas, há muito suas convicções políticas saíram do campo da ficção.
"Fomos de forma voluntária para fazer parte da causa. Chegamos lá e já fomos ajudando na montagem da estrutura junto com os parentes. Tivemos participação artística na tenda principal, onde ocorria a noite cultural", explicou Paketá. Ele revelou que a aproximação com o movimento o fez buscar suas raízes. “Quando fui ao Kuarup em 2021, vivi uma experiência que mudou minha vida e hoje estou formalizando a minha raiz ancestral, redescobrindo de onde eu vim”, informou.
Adriano Paketá revela que desde então existe um cidadão e um artista que busca sua ancestralidade e milita em prol da causa indígena. “Já tenho convites de parentes em outros Estados para participar de rituais e de mobilizações politicas na defesa dos povos e da matriz indígena do Brasil”, adiantou.
Sou movimento!
Já Marciele Albuquerque declarou. “O movimento Indígena já faz parte da minha vida, eu sou o movimento também! Foi muito incrível! Na verdade, já é um dos eventos que participo, e fiquei muito feliz e orgulhosa quando o Boi Caprichoso também teve grande interesse em que participássemos do ATL. É uma luta que nós defendemos na arena e em nossas toadas”, declarou.
Marciele conta, ainda, que as experiências mudaram sua visão de mundo. “Todos esses eventos me impactaram profundamente. Tenho a certeza de que existia uma Marciele antes desses eventos e outra depois deles. A gente vai tomando cada vez mais consciência de como o colonialismo não acabou, ele se reinventou e segue matando nossos parentes de modo implacável e covarde. Até mesmo a ‘separação’ entre a Marciele ‘cidadã’ e a Marciele ‘artista’ teve suas barreiras borradas. Não piso na arena sem entender que ali é um espaço não só de festa, alegria, mas também político, em que represento as demandas de tantos parentes e parentas, por meio da arte e da cultura", enfatizou.
Ação deliberada
A participação dos bois no ATL 2025 teve o aval das diretorias das duas associações folclóricas. Tanto Rosy Amoedo, presidente do Caprichoso, quanto Fred Góes, presidente do Garantido, fizeram questão de enviar os bois e representantes, no caso Marciele, pelo azul e Paketá pelo vermelho.
“O boi da vanguarda e atual farol do Festival sabe de sua importância enquanto promotor da arte-educação. O retorno à sociedade da luta dos povos originários, aqui, não é apenas discurso. Prezamos por algo que vai além das palavras, traduzimos em ações e compromisso de luta por uma Amazônia melhor e mundo mais igualitário”, destacou Rossy Amoedo.
“Um evento que reúne pessoas indígenas de todo o Brasil é um espaço de aprendizagem, perfeito para o Boi Caprichoso alinhar discurso e prática. Daí a ida de artistas Caprichosos ter sido prioridade da gestão que tem, em seu quadro, Marciele Albuquerque Munduruku, Gilvana Borari, Adolfo Tapayuna, além do próprio Boi Caprichoso, que integrou a programação cultural do evento”, elencou. “Estamos dando provas concretas de que o Caprichoso entende sua responsabilidade social e convida seus torcedores e torcedoras a irem às trincheiras junto aos povos indígenas de Pindorama”, convocou Ericky Nakanome, presidente do Conselho de Artes do Boi Azul.
Do lado vermelho, Fred Góes ressaltou a importância e relevância da participação do Boi da Baixa do São José no ATL. “Foi uma presença absolutamente proposital, planejada e construída com muito cuidado. Desde dezembro de 2024, o Garantido vem aprofundando seu diálogo com organizações indígenas, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), para articular essa participação no maior evento de mobilização dos povos indígenas do Brasil, não foi um planejamento de última hora. Isso também se deve ao trabalho de Izabel Munduruku, integrante da Comissão de Artes”, declarou.
Kuarup e ONU
Apesar da repercussão no ATL 2025, não é a primeira vez que o boi se faz representar em eventos de peso social, antropológico, humano e político. Adriano Paketá esteve presente em 2021, como único artista dos bois de Parintins convidado para a cerimonia anual do Kuarup, no Parque Nacional do Xingu. Por sua vez, Marciele Albuquerque foi à Roma, na Itália, para participar da Conferência da Juventude pelo Clima em 2023. O evento foi promovido pelo Fórum Mundial de Alimentos (FAO). Ela também participou da Semana do Clima da ONU em Nova York, EUA, no mesmo ano.
Muito válido
Integrante do movimento indígena no Amazonas e Conselheiro Estadual de Cultura na Cadeira dos Povos Indígenas, Ludimar Kokama, do povo Kokama do Alto Rio Negro, vê com bons olhos a inciativa de Garantido e Caprichoso. “Os bois estiveram conosco na noite cultural. O Paketá nos acompanhou na delegação do Amazonas e a Marciele participou da marcha”, detalhou. Para Ludimar, a presença é muito válida. “É importante ver esses artistas envolvidos”, completou.
Não é de hoje
A presença no ATL 2025 ganhou criticas e teve gente que torceu o nariz. Torcedores mais conservadores postaram desapontamento em redes sociais. Mas, o fato é que manifestações políticas sempre fizeram parte do discurso de Caprichoso e Garantido. Em 2022, o Garantido exibiu na última noite do festival, uma enorme faixa pedindo “Justiça para Bruno e Dom”. Em 1988, o tema do Boi Caprichoso foi “Reino Negro – Tributo a Liberdade”. Aquele era o ano do centenário da abolição da escravatura e o país começara a discutir de fato o papel do negro na construção da sociedade brasileira.
Em 1996, Emerson Maia lançou, pelo Garantido, “Lamento de Raça”, um hino ambiental do festival. Em 2022, o “Touro Negro” lançou a toada tema “Amazônia Nossa Luta em Poesia”. Um manifesto politico de luta e resistência pelo maior patrimônio ambiental do planeta. Ao participar in loco de eventos que buscam reparar graves distorções da sociedade brasileira, Caprichoso e Garantido se deixam tocar pelo povo. E é quando o veludo do boi veste a pele verdadeira de sua gente. Pele essa que é preta, parda, mestiça, ferida e cicatrizada dos acoites do tempo e na cínica mania de negar. Porque são dessas dores que é feita a cultura popular.
Texto: Mencius Melo
Fotos Caprichoso: @oguajajara e Thiago Yawanawá
Fotos Garantido: Yasmin Cadore
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Cultura