Artigo | Saúde Ancestral: A Guerra de Dona Wanda

Perfil ímpar de D. Wanda: nunca demonstrou fragilidade, mesmo quando hospitalizada em decorrência da hemodiálise. Foto: Acervo da Família

“Sigo as pegadas de minha mãe! Remédios caseiros me acompanham. A base da medicina caseira são as plantas, além de nos livrar da dependência da farmácia: não pelo preço, mas pelos efeitos colaterais”. Perpétua Guerra

Por: Fátima Guedes


Choros e lamentações ecoam insistentes como denúncias à qualidade de vida disponibilizada à população e,  em paralelo, às inconsistências do sistema cartesiano diante do caos. Frente ao vazio institucional sobre os níveis avançados de adoecimentos generalizados, Espíritos Ancestrais nos abrem portais a Sabedorias de cuidados naturais - base da sustentabilidade universal; justo nas celebrações do Dia Mundial da Saúde quando se problematiza “2025 - Inícios Saudáveis e Futuros Esperançosos”.

Perpétua Guerra, filha mais nova de Doa Wanda, é porta-voz de suas Memórias Sagradas. Foto: Arquivo Pessoal


Por essa via de Luz nos chegam memórias centenárias de Dona Wanda das Neves Guerra, ímpar Curandeira, cujo legado ecoa como provocação à reinvenção de um modelo de saúde que dialogue com práticas de cuidados popular/tradicionais sob perspectiva de amenizar ou curar o que precisa ser curado.  

Dona Wanda nasceu em 1912, na cidade do Rio de Janeiro. Sua jornada se estendeu por Fortaleza, Maranhão, Pará, Manaus e Parintins. Trouxera a este mundo onze herdeiros; ainda por aqui: Francisco Magalhães, Edmilson das Neves Guerra, Hamildes Guerra Barreto e Maria Perpétua Guerra de Araújo - a fonte das informações aqui registradas. A duras circunstâncias aprendeu a ler e a escrever com os filhos. Toda a Sabedoria como parteira, benzedeira, consertadora de desmintiduras e outras práticas de cuidados recebera via conexões com espiritualidades de longínquas ancestralidades. Após uma vida de dedicação aos cuidados de saúde e de acolhimento às mais variadas situações, em 2002, já com 90 anos, D. Wanda se despede deste plano, mas nos deixa digitais indeléveis através de toques cuidadosos.

Os Chamados Espirituais à D. Wanda permitiram-lhe um Curso de Parteira, em Manaus, no Hospital, Santa Casa de Misericórdia. Ali dedicou sua missão por muitos anos. De Manaus foi para Monte Alegre (Pará) e, por fim, para Parintins. Trabalhou no Hospital do SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) como parteira e plantonista, quando o hospital funcionava na Rua Silva Campos, em frente ao Colégio Nossa Senhora do Carmo. 

Na época, os serviços hospitalares do Município de Parintins contavam apenas com Dr. Todda* e com D. Wanda. Dr. Todda prestava atendimento em Vila Amazônia* e D. Wanda, no Hospital do SESP acompanhando partos difíceis. Há relatos de que Dr. Todda sempre recorria a Ela, considerando-lhe a larga e mística experiência no momento de dobrar o embrião no útero, se sentado, favorecendo um parto normal. Na época não era fácil a realização de cesarianas. E, assim, o “Médico da Vila”, como lembrado, junto à D. Wanda ofereciam os cuidados necessários às mulheres em risco obstétrico. Haja vista a competência da Parteira, D. Todda confiava-Lhe procedimentos clínicos de alta responsabilidade.  

A rotina intensiva de D. Wanda forçou-A encerrar os trabalhos no SESP e continuar a missão por conta própria.  Segundo estimativa confiável, acompanhou mais de 8.000 partos em casa e em hospitais, mesmo após ter parado de partejar com quase 80 anos, quando precisou de hemodiálise. 

Em Manaus, assim como em vários municípios do Amazonas, era grande a busca por seus Cuidados: médicos, advogados A procuravam para acompanhar partos das respectivas esposas; em referência, o médico, Dr. Euler Ribeiro, entre outros não lembrados no momento. Também estendia suas práticas com muita amorosidade às populações em situação de vulnerabilidade.

Além de outras competências, D. Wanda pegava barriga*, confirmava os meses de gravidez, assim como o sexo do bebê sem que fosse informada. Possuía uma grande fé em Nossa Senhora, a Deusa Universal, que A iluminava na realização das Práticas. 

Durante o trabalho de parto não recomendava chás; orientava as mulheres varrer o quintal: “Varre, minha filha! Isso acelera o trabalho de parto!” Ela não gostava de ver as mulheres sentadas ou deitadas chorando. O exercício da varrição, sob as iluminações que a Parteira recebia, facilitava um parto normal. Também avaliava com precisão o tempo em que o bebê nasceria e/ou se precisava de cesariana. E sempre deu certo. Nessa missão a Parteira também adotou várias crianças.

Abrigo de todas as vidas

Das tantas sabedorias silenciadas sobre o universo das curandagens, D. Wanda traz relatos ímpares da placenta – abrigo de todas as vidas.   

A cada ano, enterrava uma placenta no quintal para tratamentos em bebês com problemas de roncadeira no peito* após o nascimento - resto de parto. Assim diagnosticado, levava o bebê até o local da placenta enterrada, segurava-o pelos tornozelos com a cabeça para baixo e, por 3 vezes, baixava-o bem próximo à cova. Maíra, nossa neta, usufruiu dessa terapia. Até trouxe na mãozinha um raminho de capim, quando passou pela vivência.

Além da Benzeção sobre a placenta enterrada, a Mística Parteira aconselhava usar um pedacinho do alho bem fino, assado, misturado ao leite materno. Após retirar os resíduos, dar ao bebê uma colherinha daquele leite. Maíra também se curou da roncadeira com essa terapia. 

D. Wanda insistia sempre: “Acredite na reza; ela salva quando feita com fé. Às vezes, vamos a lugares onde pessoas carregam energias pesadas; não que as pessoas sejam más; é a carga que cada ser traz em si sem se aperceber e acaba contagiando ambientes e pessoas”. E recomendava: “Quando chegar em casa com algum mal-estar, dor de cabeça, concentre-se no bem, sintonize com seus guias espirituais e massageie a cabeça. Quem nos cura é a fé!” 
Perfil ímpar de D. Wanda: nunca demonstrou fragilidade, mesmo quando hospitalizada em decorrência da hemodiálise: amigos e familiares que lhes levavam consolo eram contemplados com bênçãos e energias de paz. 
Sobre sua desencarnação trouxera anúncios verídicos: “Três dias antes de eu partir, Nossa Senhora vem me avisar”. Assim aconteceu. Antes de entrar em coma no leito do hospital, Dona Wanda mandou o recado à filha Perpétua de que naquela noite, com certeza, Nossa Senhora iria avisá-la. “Comecei a chorar e disse: Ela vai ter 3 dias. À noite viajei pra Manaus. Ela já estava em coma”, relata a filha. Após o terceiro dia de coma, aos 3 de dezembro de 2002, D. Wanda se despedira desse plano.

Vestígios de Cuidados

Após os relatos da Mística Trajetória de D. Wanda Guerra, Perpétua, porta-voz dessas Memórias Sagradas, deixa seu recado: “Sigo as pegadas de minha mãe! Remédios caseiros me acompanham e os repasso aos meus filhos e netos. A base da medicina caseira são as plantas, além de nos livrar da dependência da farmácia: não pelo preço, mas pelos efeitos colaterais. Os remédios de farmácia são necessários sim, mas, antes procuremos a saúde nas plantas e nas terapias naturais deixadas pelas sabedorias ancestrais. É a fonte real da vida!”

Nosso diálogo pausa com uma receitinha incontestável para inflamações de garganta - a embrocação/esbrocação*: “Num pires, espreme-se uma bandinha de limão assado, uma colher de mel de abelha, gotas de andiroba e copaíba. Enrola-se algodão no dedo indicador e massageia a garganta. O alívio é imediato! Lembrar também do chá de alho!”
O tempo físico se esvai, evapora... Em contrapartida, pegadas, sopros, iluminações, digitais de sapiências ancestrais se eternizam e teimosiam em defesa do Bem-Viver Universal! D. Wanda das Neves Guerra! Presente Sempre!

Falares de Casa

Abrigo de todas as vidas – Referência da Pesquisadora das tradições místicas ancestrais de cuidados, Mirella Faur, sobre a placenta.  
Dr. Todda – Médico Japonês residente em Vila Amazônia. Chegou à região após a segunda guerra mundial e ali fixou residência até os anos 70 aproximadamente. Parte dos tratamentos realizava com fitoterápicos por Ele produzidos.     

Embrocação/esbrocação – Terapia popular/tradicional aplicada com o dedo indicador envolvido em gaze ou algodão no combate a inflamações da garganta.
Pegar barriga – Massagem aplicada às gravidas pelas parteiras tradicionais para avaliar a posição do feto e contribuir com um parto normal. 

Roncadeira no peito – Reação de bebês, após o parto, quando acumulam secreções no aparelho respiratório, identificadas na medicina popular/tradicional - “resto de parto”.  
Vila Amazônia – Comunidade rural de Parintins/Am.

Sobre a autora:

Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

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