ARTIGO: Aldrin Verçosa: Uma Luz contra o Caos

Consulta exige do médico atenção, saber ouvir, observar e trocar informações sobre o motivo do paciente vir ao consultório.

Por: Fátima Guedes*

Antes que as névoas do tempo ofusquem a lucidez, ativo compromisso com revitalizações de memórias ímpares cujas intervenções marcaram positivamente a saúde pública de Parintins/AM. Provavelmente boa parte da população (alheia à própria história, à proporia cultura): usuários da saúde e o público mais jovem ignoram a referência à Unidade Básica de Saúde, do Bairro Itaúna II - Aldrin Verçosa, oficializada em 15 de outubro de 2009. Afirmo: um dos raros espaços públicos de Parintins com referências idôneas. A ética humano profissional do Personagem manifestava-se em vivências incomuns ao vigente modelo biomédico. Seu legado, portanto, é digital indelével na memória de parintinenses agraciados por seus cuidados profissionais.

Eterna Presença  

Embora ausente no plano físico/material, o tempo do médico ginecologista-obstetra, graduado em 1998, pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Aldrin Verçosa Dias, é Presente Sempre! Aos 28 de janeiro de 1971, Parintins fora contemplada com Seu nascimento - fruto do amor entre os professores Fernando Dias e Lourdes Verçosa. 

Em 2009, após onze anos de dedicação ao Sistema Único de Saúde, na função de Diretor Clínico do Hospital Padre Colombo, partira para o outro plano cósmico, vítima de pancreatite aguda. Porém, fica a certeza da paz do descanso eterno. E mais: quando a atenção básica e a equidade clamam por uma Saúde Pública - direito de todos e dever do Estado, o acervo de Dr. Aldrin reafirma sua eternidade entre nós. 

A propósito, o Hospital Padre Colombo enfrenta grave crise por conta de manobrismos politiquista na destinação dos recursos públicos àquela unidade hospitalar. A tal iniquidade é possível materializá-Lo altivo e interventivo. 

Outras referências ilustram sua passagem entre nós: função, titularidade nunca impediram relações solidárias com pacientes; durante a prática médica insistia nos diálogos médico/pacientes; conhecimentos técnicos e saberes popular de saúde.  O exercício da escuta prevalecia a receituários ou mesmo a diagnósticos: antes de aplicar o conhecimento acadêmico, sondava os cuidados naturais já experienciados pelos pacientes. Em sua práxis, Consulta exige do médico atenção, saber ouvir, observar e trocar informações sobre o motivo do paciente vir ao consultório. Interessava-se sobre uso de ervas, óleos, garrafadas, banhos e saberes preventivos/curativos usados pela comunidade. Acatava a linguagem própria dos nativos relacionada ao nome de doenças e de cuidados naturais.

Em 2008, contribuíra com minha Especialização em Estudos Latino-Americanos: Conhecimentos – Estrada de mão dupla. A relação entre o Conhecimento Acadêmico e o Saber Popular/Tradicional na Construção da Saúde Pública de Parintins/Am. Fornecera-me um consubstanciado glossário de termos populares próprios da curandagem amazonense. Com amorosidade acolhia o sentido dos termos expressados durante as consultas, anotava-os e, sabiamente os decodificava sob o propósito de interagir com as memórias bioculturais. 

Em nossa entrevista, compartilhara experiências profissionais riquíssimas, um acervo indescritível. Contou-me sobre o atendimento a uma paciente idosa, bastante constrangida durante a consulta: - Dotô, tô com buchinho pra fora. - Silenciei por alguns momentos... exercitei uma escuta acolhedora... por fim decodifiquei o problema: prolapso vaginal total.  Compartilhou ainda casos semelhantes de arriamento, baldiação, gozo frouxo, fruximento, puxo, viçar, puçanga, dor na pente, morródia, isquenência, thola... No total, repassou-me oitenta e dois códigos linguísticos de nossos falares que ilustraram meu trabalho de conclusão da Especialização. 

Dr. Aldrin interessava-se também por fórmulas naturais usadas pelos nativos.  No exercício do diálogo médico/paciente alinhava possibilidades de reinvenção de uma saúde pública equitativa: A medicina natural que também é ciência, encontra raízes muito consistentes em nossa região devido à grande miscigenação que dotou o caboco detentor de um conhecimento amplo sobre ervas, chás e similares, principalmente devido à grande diversidade da fauna e flora amazônica. O médico, assim como todo cientista, tem que procurar analisar esta cultura medicinal caboca de maneira consciente, dialógica, atentando para os cuidados em comprovar cientificamente a eficácia dos métodos naturais utilizados pela população, para que não venham trazer nenhum malefício à saúde. A linguagem própria da medicina caboca representa a característica de cada região e a medicina acadêmica precisa se enquadrar neste contexto para facilitar a melhor comunicação entre médico e paciente, e, assim, elucidar as patologias ali encontradas. Muito se perdeu desse saber. A academia precisa dialogar com essa sabedoria. Ela foi e é a base da ciência dita oficial.

O acervo histórico deste Profissional conquistou homenagens públicas no carnaval de Parintins: a primeira, em 2010, quando o Bloco Ursos Polares O reconheceu - O Doutor da Alegria. Dez anos depois (2020), o bloco estreante dos funcionários do Hospital Padre Colombo - HPC na Folia, ativa Sua memória e a do companheiro de missão, Dr. Romualdo Correa. 

A amplitude de Sua ética ultrapassava o exercício médico. Na implantação da Lei Anna Vitória (lei seca), interveio com altivez através do periódico, Em Tempo Parintins, com o artigo Vitória da Vida (20/04/2007): Acredito na Lei Seca (Anna Vitória). [...] Vejo como uma luz no fim do túnel para que possamos viver com melhor qualidade de vida na Ilha de Pedro Cordovil. 

A semeadura histórica do Doutor da Alegria é vir-a-ser perene; é fecundação comprovada na opção profissional de Fernando Neto, herdeiro de Aldrin e de Marcilena Seixas. Da zelosa adubação, hoje, no Hospital Adventista de Manaus, durante atendimentos, brotam reconhecimentos ao Doutor Fernandinho: O primeiro presente recebido de paciente, a gente nunca esquece. Declara emocionado. 

Em tempos apocalípticos, testemunhos dessa natureza clamam por visibilidade, por acolhimentos... Ganhei minhas horas... Que a Luz de Dr. Aldrin Verçosa elimine sombras, iniquidades sistêmicas, sensibilize as práticas médicas e se expanda universalmente nos serviços de saúde!  

Falares de Casa

Arriamento - menstruação 

Baldiação - vômito 

Dor na pente - dor na região pélvica

Fruximento - perda da elasticidade vaginal e apresenta prolapso vaginal

Gozo frouxo - corrimento vaginal

Isquenência - glândulas da região frontal do braço; gânglios linfáticos.

Morródia - hematoquezia ou melena

Puçanga - órgão sexual feminino 

Puxo - contração uterina

Thola - Pênis.

Viçar - Relação sexual


*Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

Créditos: Arquivo da Família


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